Sunday, October 21, 2007

O corpo na casa


" Amor é primo da morte, e da morte
vencedor, por mais que o matem
(e matam) a cada instante de amor."
Carlos Drummond de Andrade

Amar de manhã é melhor do que amar anoite, de manhã a realidade das coisas são mais palpáveis, e escapam pouco do raciocínio e da lógica; amar de manhã é prático e sai um pouco daquele ambiente boçal de paixão e trocas de palavras que pela manhã perdem o sentido com o barulho dos carros, dos anúncios; amar é bom depois do banho da manhã, corpo limpo, realidade correndo pela vida, noção, base, senso; é mais caro. Eu amei de manhã, muito mais breve, mas muito mais intenso e realizador de que o amor da noite, que foi distante, que nem parecia verdade. De bom? Não. De distante.
A primeira vez que ouvi: “Eu já amei por uma noite” eu me desesperei com a humanidade, mas agora o desespero é menor, já que me atigiu a mesma escrupuleza: eu amei por uma manhã, amei de todas as formas dessa palavra. A tarde ainda tentei ressucitar o amor, fiz nele umas massagens cardíacas, respiração boca-a-boca, que demodê. A tardezinha, antes da noite, eu percebi que ele já estava morto, e o corpo grande e de difícil transporte estava aqui, o que me incomodava era esse corpo aqui, na sala, no quarto, um corpo que se multiplicava e ocupava todos os cômodos, que corpo... Mas eu me dei conta disso era a noite, esperei chegar a manhã.Hoje de manhã liguei para uma amiga, ela veio com uma caminhote branca, enrolei o corpo num tapete, e o jogamos fora, eu só fui até a metade do caminho, daí pra lá ela seguiu sozinha, queria jogar o corpo num lugar que eu não soubesse onde, pra que eu não fosse lá, pedisse resgate, tivesse lembranças quando passasse por esse lugar... Hoje mesmo trato de fazer uma faxina aqui, pra não deixar rastros de morte. Morrer dói só nos outros. Doeu em mim de uma forma muito fina, muito gentil. O corpo, de tão danado, mesmo morto, deve ir ao cinema hoje, assisitir um dos filmes populares que estão em cartaz, mas eu não topo mais com ele. Nem sei onde ele foi jogado. O corpo tem meu telefone, e cisma quando passa na minha casa e vê uma luz acessa, mas agora, ele já sabe que eu joguei ele fora, assim que percebi que ele estava morto demais, dando um cheiro de podridão à minha casa.
Hoje comprei flores, não para o corpo, mas para que a casa cheirasse mais, e encarasse de frente a primavera que vem tão inocente, nem lembra de mortes, muito menos de amores, e tambem não lembra que oferece adornos para enfeitar a morte. Adornar a morte é o que me assusta. Não adornei, já disse, as flores são para a casa. Pra adornarem a vida.